As recentes notícias de que duas mulheres teriam sido vítimas de estupro coletivo em uma mesma casa noturna na Lapa, no Rio de Janeiro [1], chamam a atenção para a urgência do combate à cultura do estupro por meio de políticas públicas que efetivem direitos das mulheres e garantam nossa segurança em espaços noturnos de lazer.Casos de violência praticada contra mulheres em casas noturnas na Europa por jogadores de futebol brasileiros só reforçam essa cultura patriarcal que vulnerabiliza mulheres e as coloca como alvo de crimes sexuais.
O fato é que diariamente mulheres e meninas são vítimas de crimes graves, como estupro, assédio e importunação sexual, entre outros. Segundo dados do Dossiê Mulher do Instituto de Segurança Pública em 2022 foi registrado o número mais elevado dos últimos nove anos, totalizando 7.363 ocorrências de violência sexual [2] na cidade do Rio de Janeiro, totalizando 1881 mulheres que denunciaram esse tipo de crime.
Destacamos que tais dados se referem exclusivamente a crimes registrados na polícia, fora isso temos muitos casos que nem sequer chegam ao conhecimento das autoridades. Nesse sentido, tais números não representam a realidade, já que — conforme os próprios dados oficiais — a subnotificação é enorme, estimando-se que apenas entre 10% e 20% das vítimas conseguem fazer uma denúncia.
Dentre os motivos para essa ausência de registro de ocorrência, como revelam as pesquisas, estão o medo das vítimas de serem desacreditadas, revitimizadas e a própria cultura de autoculpabilização que acompanha esse tipo de crime e impede que muitas cheguem a uma delegacia.
Além disso, não são raras as notícias das que foram maltratadas pela polícia, quando, por exemplo, são interpeladas por perguntas do tipo: que roupa você estava usando? Você estava sozinha a esta hora da noite? Com isso, a vítima fica exposta a uma dupla violência: à agressão sofrida e ao tratamento recebido na hora do relato do fato ou da denúncia.
Sua palavra passa a ser colocada injustamente sob suspeição. Às vezes essa demora em registrar também é fruto desse pânico, dessa vergonha, desse sofrimento que tantas mulheres sentem quando passam por situações de violência sexual.
Segundo o Ipea (2023) [3], no “Brasil ocorram 822 mil estupros, ou quase dois a cada minuto”. “Nesse caso, tomando como base os registros administrativos da polícia e da saúde, chega ao conhecimento dessas organizações do Estado cerca de 8,5% e 4,2% do total de casos que ocorrem no país anualmente.”
De acordo com esse mesmo estudo, os estupros coletivos representam 15,8% das notificações, ou seja, quando mais de um homem estupra uma mesma mulher. Especial destaque deve ser dado aos riscos que uma mulher sofre em bares e espaços noturnos de lazer, como foi o caso das recentes ocorrências na Lapa já citadas.
Esforço coletivo
Não restam dúvidas de que somente um esforço coletivo em torno dessa tragédia contra mulheres e meninas poderá criar condições de superação da triste realidade da cultura do estupro. Para tanto, entendemos que é necessário incentivar as denúncias e criar condições para que mulheres se sintam seguras para registrar a ocorrência e poder assim responsabilizar seus agressores.
Sabemos que os fatos ocorridos não são isolados, as mulheres estão sempre sob risco, em especial em locais noturnos onde há venda de bebidas, nos quais inclusive tem-se a suspeita de que possa ocorrer a colocação de substâncias narcóticas na bebida de mulheres, o que altera a capacidade delas de resistir, o que teria ocorrido nos dois casos mais recentes.
Inclusive, no Código Penal, tal conduta quando envolve ausência de capacidade de reagir é classificada como estupro de vulnerável (artigo 217-A, parágrafo 1º.), aplicável quando a vítima é incapaz de consentir, seja por alguma enfermidade ou quando, “por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.”
Mas para fortalecer as denúncias feitas por mulheres, entendemos relevante contar com o comprometimento voluntário de bares, boates, casas noturnas e outros ambientes de diversão e lazer, público-alvo da Lei Municipal 8.186/23 de nossa autoria que criou o Protocolo “Sem Consentimento é Violência”, inspirado na lei da Catalunha que permitiu a prisão do jogador Daniel Alves, que visa garantir o respeito às mulheres e a superação da cultura machista e racista que objetifica e violenta mulheres.
O enfrentamento à violência sexual como um grave problema de saúde e segurança pública pressupõe um trabalho em rede, de forma articulada como prevê o protocolo referido, que requer também o funcionamento de políticas públicas amplas e articuladas nas mais diferentes esferas da vida social.
Esse protocolo criado por lei municipal (hoje também previsto em Lei federal, nº 14786/23) determina que os funcionários da casa acolham a mulher quando há suspeita de violência, acompanhem a vítima até a delegacia, se comprometam a acolhe-la e protegê-la do agressor, fortalecendo-a para que a denúncia seja feita.
Isso inclui o treinamento do pessoal e a imediata entrega para a polícia das imagens das câmeras. É essencial cobrarmos que os estabelecimentos noturnos tenham esse compromisso com a vítima, e jamais assumam o lado do agressor.
Precisamos de boates e casas noturnas comprometidas com a segurança das mulheres, que devem ter sua palavra valorizada e credibilizada. Não podemos naturalizar tais crimes, nem deixar que mulheres continuem sendo vítimas de estupros coletivos em casas noturnas onde deveriam se sentir seguras.
É necessário que trabalhemos na prevenção e que, caso episódios como esse se repitam, as casas noturnas, ao invés de protegerem o agressor ou tentarem abafar o caso, que sejam atores de proteção, de acolhimento e fortalecedores das denúncias dessas mulheres.
Sabemos também que quando as investigações da polícia são eficazes, as vítimas se sentem mais protegidas. Além disso, em casos semelhantes, quando as vítimas se unem, aumenta a chance de responsabilização dos agressores, muitos deles que se acham acima da lei. Mas não estão.
Essencial prestar solidariedade às mulheres vítimas de estupros coletivos, que passam por maiores riscos e maior violência, para isso o protocolo mencionado envolve orientar mulheres a escolherem estabelecimentos seguros, eis que esses deverão “divulgar em lugar público, visível e de ampla circulação a sua adesão com o selo “Aqui Consentimento é Lei”, devendo ser afixados cartazes nos espaços informando acerca da disponibilidade do estabelecimento de prestar auxílio à mulher que se sinta em situação de risco ou que tenha sofrido uma violência”.
“Mexeu com uma, mexeu com todas” não pode ser só uma frase de efeito, mas sim é um compromisso de luta das mulheres para o fim da cultura do estupro e de todos os tipos de violências contra a mulher.
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Referências
[1] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/04/05/investigacoes-denuncia-estupro-coletivo-boate-lapa.ghtml
[2] https://www.isp.rj.gov.br/sites/default/files/2023-11/DossieMulher2023.pdf .
[3] https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11814/5/TD_2880_sumex.pdf
Luciana Boiteux é doutora em Direito Penal, professora licenciada de Direito Penal da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e vereadora no Rio de Janeiro.
Por Consultor Jurídico