O tribunal analisa o crime previsto no artigo 28 da Lei de Drogas, que fixa penas para quem “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização”. A discussão é feita no julgamento do Recurso Extraordinário 635.659.
Em tese, as penas previstas na norma não levariam à prisão, mas, no máximo, às demais consequências de um processo penal. Na prática, no entanto, a falta de distinção clara pode fazer — e tem feito — com que usuários sejam classificados como traficantes, ficando sujeitos a penas privativas de liberdade.
Prevalece até o momento o voto do ministro Gilmar Mendes, relator do caso. De início, ele propôs a descriminalização da posse de qualquer droga, mas depois reajustou o voto para que a interpretação se aplique apenas ao uso da maconha.
Votaram com o relator os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e Rosa Weber (hoje aposentada).
O ministro Cristiano Zanin divergiu. Para ele, o artigo 28 da Lei de Drogas é constitucional. O magistrado propôs, no entanto, a diferenciação entre tráfico e uso. Para ele, pessoas com até 25 gramas devem ser presumidas como usuárias, não traficantes. Zanin foi seguido pelos ministros André Mendonça e Kassio Nunes Marques.
Gilmar apresentou seu voto em agosto de 2015. Para ele, “a criminalização da posse de drogas para uso pessoal conduz à ofensa à privacidade e à intimidade do usuário. Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde”.
O voto do relator se baseia no argumento da Defensoria Pública de São Paulo, autora do recurso julgado. A alegação dos defensores paulistas é que o artigo 28 da Lei de Drogas é inconstitucional por violar o direito fundamental à intimidade e à privacidade. Eles também afirmam que criminalizar o uso de drogas viola o princípio da lesividade, segundo o qual só podem ser consideradas criminosas as condutas que afetem bens jurídicos de terceiros ou coletivos.
De acordo com o relator, o direito de personalidade “não está limitado a determinados domínios da vida”. Ele se aplica, segundo o ministro, “a diferentes modos de desenvolvimento do sujeito, como o direito à autodeterminação, à autopreservação e à autoapresentação”.
“Nossa Constituição consagra a dignidade da pessoa humana e o direito à privacidade, à intimidade, à honra e à imagem. Deles pode-se extrair o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação”, sustentou Gilmar.
Depois do voto do relator, os ministros Barroso e Fachin votaram pela descriminalização do porte de maconha, ainda em 2015. O caso, então, foi paralisado por pedido de vista do ministro Teori Zavascki, morto em acidente de avião em 2017.
O julgamento foi retomado em 2 de agosto de 2023, com o voto-vista de Alexandre, que propôs a fixação de parâmetros objetivos para diferenciar usuários de maconha e traficantes.
Após novo pedido de vista, feito pelo ministro André Mendonça, o caso foi retomado nesta quarta-feira.
Alexandre apresentou um denso voto, baseado principalmente em estudo feito pela Associação Brasileira de Jurimetria. O levantamento conclui, por exemplo, que jovens, negros e analfabetos são considerados traficantes com maior frequência, mesmo quando presos com quantidade de droga inferior à apreendida com pessoas acima dos 30 anos, brancas e com ensino superior.
Pessoas analfabetas, por exemplo, são consideradas traficantes quando presas com uma média de 32 gramas de maconha, enquanto a média para pessoas com ensino superior é de 49 gramas, de acordo com a pesquisa.
Alexandre também destacou que a falta de parâmetros claros para diferenciar usuários e traficantes levou a uma discricionaridade “exagerada” das autoridades policiais, do Ministério Público e do Judiciário.
“Triplicou-se em seis anos o número de presos por tráfico de drogas, mas não triplicamos o número de presos brancos, com mais de 30 anos e ensino superior, e, sim, o de pretos e pardos sem instrução e jovens. É preciso garantir a aplicação isonômica da Lei de Drogas para evitar que, em virtude de nível de instrução, idade, condição econômica e cor da pele, você possa portar mais ou menos maconha”, disse o ministro.
Para Alexandre, a quantidade é um critério importante, mas não o único. De acordo com o ministro, outros pontos devem ser considerados na hora de diferenciar o usuário do traficante, como as condições observadas no momento da prisão (se a pessoa foi pega vendendo) ou se itens como balança e cadernos de anotação indicam que o abordado é traficante, entre outros.
Segundo o ministro, a quantidade, nos casos envolvendo pouca droga, cria apenas uma “presunção relativa”, não servindo, sozinha, para qualificar tráfico ou uso.
“Em muitos flagrantes, os únicos elementos descritivos são a quantidade e o testemunho da autoridade policial. É preciso que isso seja mais bem trabalhado e que se analisem outros fatos, como a apreensão de instrumentos como celulares e balanças e as circunstâncias de apreensão.”
O ministro propôs a seguinte tese de repercussão geral:
1) Não tipifica o crime previsto no artigo 28 da Lei 11.343/2006 a conduta de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, a substância entorpecente maconha, mesmo sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;
2) Nos termos do parágrafo 2º do artigo 28 da Lei 11.343/2006, será presumido usuário aquele que adquirir guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo de 25 a 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas;
3) A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas quando a quantidade de maconha for inferior à prevista no item 2, desde que, de maneira fundamentada, comprove a presença de outros critérios caracterizadores do tráfico de entorpecentes;
4) Nas hipóteses de prisão em flagrante por quantidades inferiores à fixada no item 2, para afastar a presunção relativa na audiência de custódia a autoridade judicial, de maneira fundamentada, deverá justificar a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva e a manutenção da persecução penal apontando obrigatoriamente outros critérios caracterizadores do tráfico de entorpecentes, tais como a forma de acondicionamento, a diversidade de entorpecentes, a apreensão de outros instrumentos, como balanças, cadernos de anotação, celulares com contato de compra e venda, locais e circunstâncias de apreensão, entre outras características que possam auxiliar na tipificação do tráfico;
5) Nas hipóteses de prisão em flagrante por quantidades superiores às fixadas no item 2, na audiência de custódia, a autoridade judicial deverá permitir ao suspeito a comprovação de tratar-se de usuário.
Zanin abriu a divergência. Para ele, o artigo 28 da Lei de Drogas é o único dispositivo existente na legislação brasileira que diferencia usuários e traficantes. Assim, não é possível declarar a inconstitucionalidade do trecho.
Ele, no entanto, defendeu a diferenciação e propôs a fixação de tese no sentido de que deve ser considerado usuário aquele que porta até 25 gramas de maconha, ou seis plantas fêmeas. Para Zanin, a proposta deve valer como parâmetro adicional, mantidos os critérios já existentes na Lei de Drogas.
“A mera descriminalização do porte de drogas para consumo apresenta problemas jurídicos e pode agravar a situação que enfrentamos na problemática do combate às drogas, que é dever constitucional. Não tenho dúvida de que os usuários são vítimas do tráfico e das organizações criminosas ligadas à exploração ilícita dessas substâncias, mas se o Estado tem o dever de zelar por todos, a descriminalização poderá contribuir ainda mais para esse problema de saúde”, afirmou Zanin.
Ainda segundo ele, embora a legislação brasileira sobre drogas precise “evoluir”, não é possível declarar a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. “Como já expus, esse é o único parâmetro relativamente objetivo para diferenciar a situação do usuário da do traficante.”
Zanin propôs a fixação da seguinte tese de repercussão geral:
1) É constitucional o artigo 28 da Lei 11.343;
2) Para além dos critérios estabelecidos no parágrafo 2º do artigo 28 da Lei 11.343 para diferenciar o usuário de maconha do traficante, o tribunal fixa, como parâmetro adicional, a quantia de 25 gramas ou seis plantas fêmeas para configuração de usuário da substância, com a possibilidade de reclassificação para tráfico mediante fundamentação exauriente das autoridades.
Ao votar nesta quarta-feira, André Mendonça seguiu Zanin, mas ele entendeu que o Congresso é que deve decidir, em até 180 dias, qual quantidade deve ser considerada tráfico e qual deve ser considerada para uso próprio.
Antes dessa definição legislativa, o ministro propôs que deve ser presumido como usuário quem porta até dez gramas de maconha.
“Entendo que a questão da descriminalização é uma tarefa do legislador. Na prática, estaríamos liberando o uso (se a corte decidisse pela descriminalização).”
Já Nunes Marques acompanhou Zanin quanto à definição de 25 gramas para que uma pessoa seja enquadrada como usuária.
Segundo o ministro, “para além de interferência desproporcional do Poder Judiciário” no Legislativo, a descriminalização poderia “potencializar o tráfico”.
RE 635.659