A busca pessoal feita por policiais deve estar fundada em elementos indiciários objetivos, não sendo lícita a abordagem com base em raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física.
Esse entendimento é do Supremo Tribunal Federal, que decidiu nesta quinta-feira (11/4) que o chamado “perfilamento racial” invalida provas colhidas durante abordagens policiais.
As buscas, estabeleceu o STF, devem estar fundadas em elementos indiciários objetivos de posse de arma proibida “ou de objetos ou papéis, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual cor da pele ou aparência física”.
O perfilamento acontece quando as buscas pessoais não são feitas a partir de evidências objetivas que apontem uma atitude suspeita, mas com base em raça, cor, descendência, nacionalidade ou etnicidade do alvo da abordagem.
O caso concreto que motivou o julgamento é o de um homem negro condenado a quase oito anos de prisão por tráfico de drogas depois de ser flagrado com 1,53 grama de cocaína. Embora a análise se dê em um Habeas Corpus, a decisão pode servir como um importante precedente sobre o tema.
A tese no caso foi proposta pelo ministro Edson Fachin e acompanhada por unanimidade.
Eis a tese:
A busca pessoal, independente de mandado judicial, deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual cor da pele ou aparência física.
Voto relator
Segundo Fachin, relator do caso, o Código de Processo Penal estabelece que a busca pessoal só pode ser feita quando houver “fundada suspeita”. Assim, não se pode admitir abordagens policiais fundamentadas só em critérios de raça, cor ou aparência física.
“Ademais, o fato de a busca pessoal resultar em objetos ilícitos ou que constituam o corpo de delito não torna a revista lícita. O resultado da busca pessoal nesse sentido é irrelevante para a caracterização de sua licitude. O necessário para conferir legitimidade à busca pessoal é a existência de justa causa anteriormente à realização da medida, ainda que essa resulte infrutífera.”
O relator também disse que é papel da sociedade, do sistema de Justiça e das forças policiais barrar comportamentos que, consciente ou inconscientemente, atribuem a pessoas negras sentidos negativos baseados em estereótipos “que os situam como sujeitos supostamente criminosos”.
“O sistema de Justiça ainda não deu mostras de que desativou a rede de estereótipos que atribui aos corpos negros sentidos sociais negativos que legitimam violências, inclusive estatais, como é o caso inequivocamente do encarceramento em massa de pessoas negras. É preciso fazer o registro de que o elemento raça acaba sendo, nesse contexto perverso, utilizado para a distinção dos sujeitos vítimas da letalidade das atividades policiais”, apontou Fachin.
Divergências
Embora a posição do relator tenha sido acompanhada por unanimidade, a maioria dos ministros divergiu quanto à aplicação ao caso concreto, seguindo o voto do ministro André Mendonça.
Para ele, as provas obtidas por meio do perfilamento racial não devem ser admitidas. No entanto, disse Mendonça, não há indícios de abordagem discriminatória no caso concreto, já que a busca pessoal teria ocorrido em um lugar conhecido por ser um ponto de tráfico de drogas.
“Tínhamos um local público e notoriamente conhecido como de tráfico de drogas. Eles estavam a uma distância, deram uma sirene, ao darem a sirene os indivíduos tentam se evadir. Efetivamente encontram drogas com o paciente. Ele tenta ainda ocultar uma quantidade, além da que foi apreendida. Ou seja, no caso concreto, eu não entendo haver razões ao paciente.”
No entanto, Mendonça se disse “aberto” à fixação de uma tese sobre o tema, mesmo votando contra a concessão do Habeas Corpus.
“Temos no CPP o artigo 244, que é o que atribui às autoridades o poder de atuar e fazer uma abordagem mediante uma fundada suspeita. A fundada suspeita tem de ter, para a sua caracterização, elementos os mais objetivos possíveis, ainda que alguma subjetivação possa ser considerada.”
Ao acompanhar a divergência, o ministro Alexandre de Moraes também afirmou que o local em que houve a abordagem é conhecido por ser um ponto de tráfico. Assim, não seria possível caracterizar o caso como de perfilamento racial.
“Existe perfilamento em várias operações? Existe. Mas, nesse caso, há provas de que ocorreu? Não é um bom caso para se extrair essa tese”, afirmou Alexandre.
O ministro, no entanto, pontuou que o perfilamento é uma forma de racismo e deve ser combatido pelo Judiciário por meio de interpretações constitucionais, em acordo com as previsões da Constituição e da legislação brasileira.
“Não basta só a previsão, se não houver interpretação constitucional por todo o Judiciário e principalmente pelo STF que venha a permitir o efetivo e pleno combate ao racismo. Somente essa interpretação de efetivação das normas de combate ao racismo permitirá a erradicação. Uma forma grave de perpetuação do racismo estrutural é exatamente o perfilamento racial de pessoas afrodescendentes.”
Julgamento do STJ
O caso foi analisado pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça antes de ir ao Supremo. Na ocasião, a Defensoria Pública não citou o perfilamento racial. Em vez disso, pediu a aplicação do princípio da insignificância por causa da pouca quantidade de droga encontrada com o réu.
Quem levantou o tema do perfilamento racial foi o ministro Sebastião Reis Júnior, relator da matéria no STJ. Ele afirmou que, ao que tudo indicava, a “fundada suspeita” dos policiais militares que fizeram a abordagem era só a cor da pele do suspeito.
“Não se falou de altura, de fisionomia, se tinha cabelo, se tinha barba. A única referência era a pele negra. E a situação era de uma pessoa parada do lado de um carro”, afirmou Reis Júnior. “Para mim, ficou claro que o motivo da aproximação foi por se tratar de pessoa negra. Não tenho a menor dúvida disso.”
Com base nesse argumento, o magistrado propôs que a abordagem fosse reconhecida, de ofício, como nula, uma vez que haveria manifesta ausência de fundada suspeita para justificar o procedimento. Consequentemente, os elementos probatórios cairiam também, levando à absolvição do réu.
A proposta, no entanto, não convenceu os demais ministros da 6ª Turma. Eles disseram que não era possível saber se a abordagem se deu exclusivamente em razão da cor da pele do réu.
Ao levar o caso ao Supremo, a Defensoria mudou o enquadramento: em vez de pedir somente a aplicação da insignificância, introduziu os argumentos levantados por Sebastião Reis Júnior na análise da 6ª Turma.
HC 208.240
Tiago Angelo é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Por Consultor Jurídico