OPINIÃO: Veículos cadastrados em ação criminosa: caberia prisão em flagrante?

Imagine que num belo dia de domingo você está passeando com sua família em seu veículo, quando uma abordagem policial o surpreende. Realizadas as providências policiais, você é informado de que a fundada suspeita que ensejou a abordagem está ligada ao fato de que o emplacamento do seu veículo está cadastrado em sistema policial como envolvido em uma ação criminosa. O que fazer?

São ações como: direção perigosa em via pública; malabarismos com motocicletas; supostas tentativas de atropelamento; fuga de abordagens policiais; entre outras tantas. Basta que alguém ligue para a polícia descrevendo uma conduta criminosa e fornecendo os dados da placa do veículo e pronto, esse veículo poderá ter um cadastro de ação criminosa.

Ainda que o termo “ação criminosa” não seja um crime propriamente dito, com tipificação no código penal ou em qualquer outra legislação especial, fato é que para o agente (policial) que fez a consulta do emplacamento daquele veículo, ele esteve envolvido em uma ação criminosa.

Isso quer dizer que, neste caso, você estaria preso em flagrante delito? Que seria conduzido ao distrito policial em um guarda preso de viatura? Ou que, ainda, seria obrigado a acompanhar os policiais que realizaram a abordagem até o distrito policial competente, a fim de que a ocorrência seja apresentada pessoalmente? Neste artigo, responderemos a esta e outras questões.

Para iniciar o esclarecimento das questões acima enumeradas, é necessário ter em mente que essa condução policial mencionada ocorre em casos em que haja flagrante delito, nos termos do artigo 302 do Código de Processo Penal (Brasil, 1941).

 

 

Necessário é, também, entender que, em caso de flagrante delito, as autoridades policiais e seus agentes deverão realizar a prisão do criminoso, é o chamado flagrante obrigatório. Junta-se a essas considerações que o flagrante delito não é um ato único, que se exaure em um único ato, mas dividido em fases.

Prisão captura

Embora haja discordâncias entre doutrinadores da área penal sobre as fases que envolvem uma prisão em flagrante, a maioria concorda que uma dessas fases é a prisão captura, e é justamente essa que nos interessa neste artigo.

Prisão captura nada mais é do que o momento em que um indivíduo a quem é imputado fato criminoso é detido por alguém. Essa detenção, cerceamento parcial da liberdade de locomoção, é seguida de outras fases, que culminarão (ou não) no encarceramento do indivíduo capturado.

A prisão-captura pode ser realizada (em caso de flagrante facultativo) por qualquer do povo ou deve ser realizada (em caso de flagrante obrigatório) pela autoridade policial e seus agentes, quando um autor de ato criminoso estiver em flagrante delito. Analisemos, pois, a conduta de conduzir veículo cadastrado em uma ação criminosa.

Com a leitura do artigo 302 do Código de Processo Penal (Brasil, 1941), podemos descartar a ocorrência do seu inciso I, qual seja, está cometendo. Isso porque, seja lá qual for a ação criminosa cadastrada para aquele veículo, ela ocorreu em algum momento passado e, portanto, não está acontecendo no presente momento.

Com vistas ao inciso II, observa-se que essa não seria a interpretação mais adequada, uma vez que, cometido o crime, o suposto autor já teria deixado o local dos fatos, estando em deslocamento, sendo mais apropriada, nesse contexto, a redação do inciso IV do mesmo artigo.

Se o condutor do veículo abordado não foi perseguido por viaturas policiais, o que, no caso em exemplo, não ocorreu, também podemos descartar a ocorrência do inciso III, perseguido logo após. Ficamos com o inciso IV. Nos termos do inciso IV, o condutor teria que ser abordado (capturado) quando fosse encontrado logo após cometer o suposto crime.

Sobre o inciso IV, do artigo 302 do Código de Processo Penal (Brasil, 1941), é necessário esclarecer que nem a legislação penal, nem a jurisprudência apontou tempo máximo específico para que ela ocorra, deixando de prever um limite à imposição da prisão em flagrante em casos em que o indivíduo é posteriormente localizado.

Divulgação

 

Se a ação criminosa na qual o seu veículo estaria supostamente envolvido ocorreu em algum momento passado, digamos mais de 24 horas, então não há que se falar em ser encontrado, logo depois, com objetos que o fazem presumir autor de fato criminoso. Ou seja, não importa em qual tipo de ação criminosa o seu veículo seja vinculado. Se o fato a que é imputada uma conduta humana relacionada ao seu veículo não encontrar amparo em um dos incisos do artigo 302 do Código de Processo Penal, então não há que se falar em prisão captura (ONU Mulheres, 2024).

O policial, nesse caso, poderá lavrar um registro da respectiva ocorrência, já que ele abordou um veículo que estava (Portal Uruguaiana, 2024) cadastrado como envolvido em um crime, mas não poderá impor prisão captura ao abordado e nem conduzi-lo ao distrito policial para dar conhecimento dos fatos (ONU Mulheres, 2024) ao delegado de polícia.

Até porque o registro de ocorrência lavrado no próprio local da abordagem, ou posteriormente, pode ser encaminhado à delegacia de polícia (Portal Uruguaiana, 2024) responsável por aquela região, a fim de que seja instaurado o devido inquérito policial para apuração dos fatos, observando-se a conveniência de fazê-lo.

A insistência ou mesmo exigência por parte do policial em conduzir a ocorrência para apresentação pessoal ao delegado plantonista não encontra guarida em lei. Além disso, a Lei nº 13.869/2019, Lei de Abuso de Autoridade, em seu artigo 33, prevê como abuso de autoridade exigir o cumprimento de obrigação sem expresso amparo legal.

Falta de ocorrência em distrito policial

Um olhar desatento aos fatos poderia levar alguém a pensar que a não apresentação dessa ocorrência, pessoalmente, em distrito policial, poderia prejudicar um possível inquérito policial ou mesmo a persecução penal, mas uma breve reflexão derrubaria tal argumento.

Primeiramente, devemos avaliar toda a problemática que pode ocorrer no momento do cadastro de um veículo como implicado em ação criminosa. A pessoa que fez a ligação para passar o emplacamento do veículo pode ter passado um sinal alfanumérico de maneira equivocada.

Ainda, pode ter passado o caractere alfanumérico correto, mas o autor do crime que se evadiu naquele veículo fez uma adulteração do emplacamento, a fim de furtar-se da ação da Justiça, como, por exemplo, usando uma fita isolante com o propósito de fazer uma letra “F” da placa de seu veículo se tornar uma letra “E”.

Outra possibilidade seria o fato de haver um veículo dublê circulando com o mesmo emplacamento do veículo original, assim como a mesma marca e cor daquele veículo.

Sendo um desses o caso relacionado com a pessoa abordada, seria possível ter uma ideia do tamanho de sua frustração ao ser coercitivamente conduzida a um distrito policial.

Em segundo lugar, ainda que seja exatamente aquele veículo utilizado em um ato de crime, bem como seu condutor o autor de um crime em que tenha utilizado aquele veículo como instrumento do crime (atropelamento, por exemplo) ou como meio de fuga, o registro de ocorrência lavrado no local dos fatos será suficiente para que, posteriormente, um inquérito seja instaurado.

No primeiro caso, a prisão captura é indevida, no segundo; desnecessária.

Exceção deve ser feita, é claro, quando a abordagem policial se dá logo depois do fato criminoso atribuído àquele veículo, como, por exemplo, em um atropelamento onde o condutor do veículo se evade do local do ocorrido. Nessa circunstância, a prisão captura e posterior condução do indivíduo e veículo ao distrito policial encontra respaldo no artigo 302, inciso IV, do Código de Processo Penal (Brasil, 1941).

Neste ponto, (MP-PR, 2024) uma questão relevante e interessante se apresenta: se, no momento de cadastro de um veículo como relacionado a uma ação criminosa, o denunciante passar dados incorretos aos policiais, que posteriormente realizam a sua abordagem, sendo efetivada a prisão em flagrante do seu condutor; seria essa prisão abusiva?

Restaria responsabilidade civil, penal ou administrativa da autoridade policial (MP-PR, 2024) que fez a prisão e condução desse indivíduo. Considerando que a autoridade que realizou a prisão incorreu em erro determinado por um terceiro que, diga-se de passagem, foi descuidado?

Abordaremos o tema em um próximo artigo.

 


Referências

BRASIL. Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União: seção 1, Rio de Janeiro, RJ, p. 19699, 13, out. 1941. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del368 9.htm. Acesso em: 15 mai. 2024.
BRASIL. Lei n.º 13.869, de 5 de setembro de 2019. Dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade; altera a Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, a Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, e a Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994; e revoga a Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965, e dispositivos do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Diário Oficial da União: seção 1, Edição Extra – A, Brasília, DF, p. 1, 05 set. 2019.
ONU MULHERES. ONU mulheres Brasil. ONU Mulheres, 2024. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/. Acesso em: 15 mai. 2024.
PARANÁ (Estado). Ministério Público do Paraná. Notícias. MP-PR, 2024. Disponível em: www.ceaf.mppr.mp.br. Acesso em: 15 mai. 2024.
PORTAL URUGUAIANA. Notícias. Portal Uruguaiana, 2024. Disponível em: https://portaluruguaiana.com.br/. Acesso em: 15 mai. 2024.

 

  • é oficial da Polícia Militar de São Paulo ocupante do posto de 1º Tenente PM, bacharel em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco-SP, bacharel em Direito pela Universidade Cruzeiro do Sul, Campus São Judas Tadeu-SP e pós-graduando em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

     

 

Por Consultor Jurídico