É ônus do Estado comprovar a integridade e a confiabilidade das fontes de prova por ele apresentadas, inclusive quando elas tiverem natureza digital. Assim sendo, é incabível simplesmente presumir a veracidade das provas quando ficar caracterizado o descuido na coleta e no armazenamento das evidências.
Com esse entendimento, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento a recurso em Habeas Corpus para anular provas obtidas pela polícia em investigação sobre uma organização criminosa especializada em furtos eletrônicos contra instituições financeiras.
Essas provas são digitais e foram coletadas em medida de busca e apreensão autorizada pela Justiça, com a consequente quebra do sigilo dos dados armazenados nos aparelhos eletrônicos apreendidos. As máquinas foram periciadas primeiro pelos bancos vítimas dos furtos e, depois, pela polícia.
Para a defesa, isso representa a quebra da cadeia de custódia da prova digital, pois, por causa do descuido dos investigadores, não há meios de garantir que os dados usados para embasar a denúncia são exatamente os mesmos que foram retirados dos aparelhos.
Relator, o desembargador convocado Jesuíno Rissato, que herdou o caso do ministro João Otávio de Noronha, votou por negar provimento ao recurso, mantendo a posição do relator original: o tema é complexo e sua análise demanda ampla dilação probatória, o que não cabe na via do Habeas Corpus.
Abriu a divergência vencedora o ministro Ribeiro Dantas, para quem a prova deve ser declarada nula desde já, pois o Estado falhou em comprovar a higidez das informações virtuais. Em vez disso, não há nenhuma documentação dos atos praticados na arrecadação, no armazenamento e na análise dos computadores apreendidos.
Como confiar?
O voto do ministro Ribeiro Dantas teve como objetivo analisar se a polícia, ao coletar as provas, adotou cautelas suficientes para garantir que ela permaneceria inalterada. Para isso, a coleta deveria ser feita de maneira profissional e técnica, com elevado grau de conhecimento e diligência.
Não foi o que aconteceu, de acordo com o magistrado. Não se sabe como os equipamentos foram coletados, onde foram armazenados, quem teve contato com eles, quando tais contatos aconteceram e qual o trajeto administrativo interno percorrido.
O banco vítima do crime teve acesso ao material e fez uma perícia antes da polícia, mas não há especificação sobre como isso ocorreu: a instituição financeira teve acesso a um arquivo extraído pelos investigadores ou pôde manusear as máquinas apreendidas?
Além disso, quando a polícia finalmente fez a perícia, não explicou a metodologia usada para extrair os arquivos dos computadores. “Não sabemos nada sobre o que a polícia fez para obter os dados ou garantir sua integridade, porque ela não se preocupou em documentar suas ações”, afirmou o relator.
Essa lógica, na visão do ministro, ignora que a atividade estatal no processo penal é objeto do controle de legalidade. Logo, não há como concluir que as provas são hígidas apenas a partir da confiança de que os agentes estatais tenham feito tudo dentro da legalidade.
“A prova penal é um assunto sério. Ignorar suas regras tem resultados desastrosos, como a condenação de pessoas inocentes e o possível encobrimento de comportamentos estatais ilícitos — a não ser que, ingenuamente, acreditássemos que tais eventos nunca acontecem. Exigir do aparato investigativo e acusador a observância um padrão básico de diligência, destinado a prevenir a ocorrência de erros graves, é algo que não pode ser dispensado pelo Judiciário”, apontou ele.
Cadê o hash?
O voto não fixou os caminhos que a polícia deveria ter seguido na cadeia de custódia, mas apresentou um exemplo já bastante comum nos procedimentos penais, e, no caso julgado, totalmente ignorado: o uso da técnica de algoritmo hash.
Trata-se de um código eletrônico aplicado sobre determinadas informações digitais e que corresponde exclusivamente a elas. Ao final do trânsito dessas informações, qualquer alteração vai gerar um código hash diferente.
A existência dessa técnica foi o que levou o ministro Ribeiro Dantas a concluir que uma fonte de prova que armazene dados imateriais, se coletada de maneira profissional e técnica pela polícia, pode oferecer garantias de mesmidade superiores àquelas de uma fonte corpórea.
“Embora sejam já há alguns anos conhecidos esses procedimentos técnicos, diversos foram os descuidos da autoridade policial no manuseio dos aparelhos eletrônicos apreendidos neste processo”, afirmou o relator.
Ele ainda destacou que a posição firmada não contrasta com a jurisprudência da 6ª Turma do STJ, segundo a qual a violação da cadeia de custódia deve ser sopesada pelo magistrado com os demais elementos da investigação para aferir se a prova deve ser considerada confiável.
“Não é a simples violação de alguma regra protocolar que fundamenta a declaração de inadmissibilidade das provas neste caso, mas, sim, a constatação de que a acusação e a polícia não tiveram nenhum cuidado com a documentação de seus atos no tratamento da prova, nem apresentaram nenhuma outra prova que garantisse a integridade do corpo de delito submetido à perícia.”
“Nesse cenário, a quebra da cadeia de custódia, com gravíssimo prejuízo à confiabilidade da prova manuseada sem o menor profissionalismo pela polícia, parece-me evidente”, acrescentou ele. Formaram a maioria os ministros Reynaldo Soares da Fonseca e Joel Ilan Paciornik. Com o provimento do recurso, essas provas serão retiradas do processo.
A defesa foi patrocinada pelos advogados Antônio Carlos de Almeida Castro, Marcelo Turbay Freiria, Caio Badaró e Geraldo Prado.
Clique aqui para ler o acórdão
RHC 143.169
Danilo Vital é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico