A entrada em domicílio sem autorização judicial depende de fundadas razões e, quando permitida pelo morador, deve ser registrada. E a palavra dos policiais não pode bastar para legitimar prisões e condenações, sob pena de violação do direito de defesa e de estimular o racismo.
Com esse entendimento, o desembargador Alcides da Fonseca Neto, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, revogou na última sexta-feira (5/4) a prisão preventiva de um acusado de tráfico de drogas.
O homem foi preso em flagrante em 27 de março, após tentar se livrar de 11 pinos vazios de cocaína quando policiais invadiram a casa de um amigo dele em Cambuci, na Região Noroeste do estado do Rio. Posteriormente, a prisão foi convertida em preventiva.
Em sua decisão, Alcides da Fonseca Neto apontou que os policiais não tinham mandado de prisão, nem autorização do proprietário para entrar na casa. Além disso, não havia indícios de prática de crimes a justificar o ingresso no imóvel.
“Deveras, é inadmissível que policiais, baseados exclusivamente em denúncias anônimas ou impressões pessoais, maculem o direito constitucional à inviolabilidade de domicílio e entrem nas casas das pessoas no afã de procederem à descoberta de algum crime a ser cometido em flagrância”, escreveu o magistrado.
Ele destacou que esses “comportamentos abusivos” de policiais só ocorrem em comunidades carentes, para a prisão de pretos e pobres. “Alguém conhece alguma diligência semelhante que tenha ocorrido nos bairros de Ipanema e Leblon? Nestes bairros, a polícia sequer ultrapassa a portaria, com medo de que possam vir a ser presos”.
Súmula inconstitucional
Fonseca Neto também criticou o peso conferido ao relato de policiais pela Súmula 70 do TJ-RJ. Aprovada pelo Órgão Especial do tribunal em 2003, a norma tem a seguinte redação: “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”. A pedido da Defensoria Pública do Rio, a corte fluminense discute o cancelamento ou a revisão da norma.
“Sem dúvida que, em crimes cometidos à sorrelfa, a palavra do policial se reveste em maior relevância, assim como também ganha força a palavra da vítima. Entretanto, a exceção virou a regra, de modo que muitos policiais militares e civis se utilizam deste verbete de súmula para, de modo arbitrário, prender a classe trabalhadora e pobre deste estado, sem maiores discussões.”
A distorção, segundo o desembargador, ocorre com frequência nos casos de tráfico de drogas. “Nas varas criminais, palco principal do teatro kafikiano, não adianta que a família do réu arrole seus parentes e amigos para dizer que a prisão foi ilegal. Juízes sérios e competentes afirmam, então, que entre a palavra do réu e de sua família, preferem a presunção de legitimidade da palavra dos policiais. Pronto. Resolvido. Mais um jovem negro, de pouca instrução, é condenado, normalmente com pequena quantidade de entorpecente.”
Preso, o acusado será obrigado a integrar alguma organização criminosa, de acordo com o magistrado. E, quando ele deixar a penitenciária, será forçado a ingressar de vez no tráfico de drogas, “uma vez que nenhum empresário honesto e de conduta ilibada vai empregar um preto com ficha criminal”, ressaltou Fonseca.
Em depoimento, os policiais alegaram que, apesar de o réu, por várias vezes, não ter autorizado a entrada na residência, eles o convenceram a permitir o acesso após avistarem uma maritaca no interior da casa, com, segundo os agentes, sinais de maus-tratos.
“Os policiais convenceram o paciente de que deveria concordar com a entrada deles, principalmente porque lá havia uma maritaca aparentemente sofrendo maus-tratos? Trata-se de um verdadeiro teatro de horror, voltado, quase sempre, para os jovens pobres e pretos, moradores da periferia ou de alguma comunidade. Salvaram a maritaca e prenderam o homem, que hoje vale menos do que uma ave”, destacou o desembargador.
Para ele, a Súmula 70 viola os princípios da dignidade humana, do contraditório e da ampla defesa. Além disso, reproduz o racismo.
Por Consultor Jurídico